O Brasil está em um momento decisivo na regulamentação da Inteligência Artificial (IA). O Projeto de Lei nº 2.338/2023 (o Projeto), recentemente aprovado pelo Senado e agora em tramitação na Câmara dos Deputados, busca estabelecer diretrizes para o uso responsável da IA, garantindo segurança jurídica e a proteção dos direitos fundamentais. No entanto, o texto aprovado ainda enfrenta desafios significativos, especialmente no que diz respeito ao equilíbrio entre regulação e inovação.

Conforme mencionado pelo relator da Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA), senador Eduardo Gomes:

"A regulação da inteligência artificial é uma das missões mais complexas que o Parlamento enfrenta atualmente. O desafio de propor uma norma que seja capaz de proteger suficientemente direitos e garantias e de, ao mesmo tempo, fomentar a inovação e o desenvolvimento tecnológico é enorme" ¹ 

Já tendo tido sua atividade encerrada em dezembro de 2024, a CTIA foi criada em agosto de 2023 para examinar os projetos de lei relativos à IA no Brasil após a emissão de um relatório final aprovado pela Comissão de Juristas responsável por dar subsídios aos projetos de lei desta matéria.

Dentre as medidas tomadas pela CTIA, durante o processo de tramitação do Projeto, foram realizadas diversas Audiências Públicas interativas com especialistas nas áreas de direito, privacidade, indústria, tecnologia, ciência da computação, entre outros, além de contar com a participar de CEOs de startups e empresas internacionais, artistas e diretores de institutos não governamentais e de pesquisa.

Como resultado dos trabalhos da CTIA, foi apresentado em novembro de 2024 um novo texto ao Projeto com vistas a um maior equilíbrio entre a proteção de direitos e a garantia de desenvolvimento econômico e tecnológico do país.

O Projeto propõe um marco regulatório baseado em uma abordagem de avaliação de risco, semelhante ao modelo adotado na União Europeia. Entre seus principais pontos, estão:

• Definição de princípios para o uso ético e seguro da IA, como transparência, não discriminação e prestação de contas;
• Classificação dos sistemas de IA conforme o nível de risco que representam para os usuários e a sociedade;
• Obrigação de avaliações de impacto e governança para sistemas considerados de alto risco; e
• Vedação de sistemas de risco excessivo, incluindo aqueles que exploram vulnerabilidades humanas ou promovem vigilância social abusiva.

Além disso, o Projeto prevê a criação de uma Política Nacional de Inteligência Artificial, mecanismos de governança e responsabilização e a regulação do uso de IA em áreas como publicidade e justiça.

Embora a estrutura regulatória seja essencial para garantir que a IA seja desenvolvida e utilizada de forma ética e segura, o desafio agora está em garantir que essa regulação não se torne um entrave ao desenvolvimento tecnológico e à competitividade do Brasil no setor.

A principal preocupação dos setores produtivos e especialistas em tecnologia é que um excesso de burocracia possa frear a inovação. Diferentemente da União Europeia, o Brasil ainda não consolidou uma indústria forte de IA, e regulamentações excessivamente rígidas podem afastar investimentos e dificultar o crescimento das startups e empresas nacionais que dependem da tecnologia para se desenvolver.

Neste sentido, lideranças industriais da Confederação Nacional da Indústria (CNI) se mostraram incisivamente contrárias à redação do Projeto que teria excedido o escopo e criando obstáculos para o desenvolvimento tecnológico no país ao regular a concepção e o desenvolvimento de IA, quando, segundo líderes da CNI, o Projeto deveria se ater às aplicações da IA, como fizeram outros países.

Além disso, a falta de clareza sobre a definição de alto risco pode gerar incerteza jurídica. Empresas que desenvolvem IA para setores como saúde, segurança e finanças, por exemplo, podem enfrentar dificuldades operacionais caso as exigências regulatórias sejam excessivas ou pouco objetivas.

A escolha do legislador por não definir de forma clara e objetiva o que seria alto risco, por um lado permite uma tramitação mais rápida do Projeto nas casas legislativas, mas, por outro, gera incerteza e apreensão por parte do mercado sobre a possível regulação que será estabelecida posteriormente indicando os parâmetros para que a IA seja considerada de baixo, médio ou alto risco.

Outro ponto sensível é a criação de uma autoridade reguladora específica para IA. O Projeto não define claramente se a fiscalização será feita por um novo órgão ou se ficará a cargo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) ou de outra entidade existente. Essa indefinição pode levar a problemas na aplicação das regras e gerar insegurança jurídica para empresas e pesquisadores. Ademais, a criação de uma nova autoridade fiscalizadora depende que o Projeto tenha sido apresentado pelo Poder Executivo, uma vez que compete exclusivamente a ele a criação de novas entidades públicas.

Para evitar que a regulação prejudique a inovação, algumas melhorias poderiam ser discutidas na Câmara:

• Regulação Flexível e Proporcional: o Brasil pode seguir exemplos de países que adotaram uma abordagem regulatória mais flexível, focada na autorregulação e no monitoramento contínuo. Criar um regime regulatório escalonado, com regras proporcionais ao porte da empresa e ao impacto da tecnologia, pode ajudar a evitar a burocratização excessiva.

A autorregulação do setor dialoga com as práticas atualmente adotadas pela publicidade e propaganda no Brasil, que, a partir de uma autorregulação, foi responsável pela criação de um órgão próprio de fiscalização – o Conar, não vinculado ao poder público. A autorregulação da IA possibilita uma maior e melhor integração com o setor de publicidade quando pensamos na IA voltada para este setor – que é um dos aspectos do Projeto.

Além disso, na esteira do que se viu ocorrer com a regulamentação dos temas de proteção de dados pessoais pela ANPD, estabelecer um regime regulatório escalonado de forma proporcional ao porte da empresa, isto é, estabelecer regras mais flexíveis às empresas de micro e pequeno porte, permite que empreendedores consigam estruturar sua atividade no mercado antes de estarem obrigados ao cumprimento de requisitos legais que, em muitos casos, podem ultrapassar a capacidade técnica e financeira que as empresas possuem assim que ingressam no mercado;

• Sandbox Regulatório: a implementação de um ambiente de testes regulatórios (sandbox) permitiria que empresas experimentassem soluções inovadoras de IA sem riscos imediatos de sanções, garantindo que a regulação acompanhe a evolução da tecnologia (hoje, a única iniciativa nesse sentido está sendo desenvolvida pela ANPD, em um escopo limitado e com um viés voltado à proteção de dados pessoais).

Em comparação aos textos iniciais do Projeto, a redação atual apresenta um cenário mais favorável ao desenvolvimento tecnológico uma vez que exclui da aplicação da lei as atividades de desenvolvimento e teste de IA que não tenham aplicação comercial. Ainda assim, a adoção de sandbox permitiria que atividades comerciais propiciassem ambientes seguros para teste da tecnologia sem riscos imediatos de aplicação legal;

• Fomento à Inovação e Pesquisa: a criação de incentivos fiscais e fundos de investimento voltados para IA pode impulsionar o setor sem comprometer a segurança e os direitos fundamentais. O Brasil precisa garantir que sua regulação não apenas mitigue riscos, mas também estimule o crescimento da indústria nacional.
• Maior Diálogo com o Setor Privado e Acadêmico: envolver empresas, startups, universidades e centros de pesquisa no desenvolvimento da regulamentação pode garantir que as regras sejam aplicáveis na prática e que não limitem avanços científicos e tecnológicos. Tais debates permitem uma participação ampla da sociedade na construção do texto normativo e contribui para a criação de um texto que seja capaz de proteger direitos e garantias fundamentais, sem criar entraves ao desenvolvimento tecnológico e econômico do país.

A regulamentação da IA no Brasil é necessária e bem-vinda, mas precisa ser feita com equilíbrio e pragmatismo. Se bem estruturada, pode tornar o país uma referência na adoção ética e inovadora da IA. Porém, se excessivamente restritiva, pode gerar insegurança jurídica e dificultar o avanço tecnológico nacional. O desafio da Câmara, agora, é encontrar esse ponto de equilíbrio.

Continuaremos acompanhando o processo de regulamentação do uso de IA no Brasil e os impactos dessa nova legislação nas atividades desenvolvidas no território nacional. Em breve, traremos novas considerações sobre o tema.

1. Agência Senado (Comissão debate projetos que regulamentam a inteligência artificial — Senado Notícias) ↩